Há
quem diga que tive muita sorte pela família que me calhou. Discordo. Penso
que eles é que têm muita sorte por poderem fazer parte da minha vida. Não sou
uma simples cadela que se contenta com um pedaço de carne e um mimo esporádico
do dono. Aprendi a apreciar as coisas boas da vida (vida de cão não é para
mim!). Inicialmente, o meu instinto dizia-me que devia ser submissa e amar
incondicionalmente os meus donos. Depois mudei.
Ainda
não tinha feito um ano, quando se mudou para a casa do outro lado da rua um
casal de meia idade. Com eles veio um gato, o Jeremias. Odeio gatos. Cheiram
tão mal! As pessoas que vivem com gatos devem ter constipações crónicas ou o
olfato avariado. O meu olfato nem é grande coisa (mais uma prova de que não sou
uma cadela vulgar), mas consigo sentir o cheiro a gato a mais de 100 metros! É
gatos e atum. Não podem abrir uma lata no rés-do-chão sem que eu comece a
salivar! Voltando ao Jeremias… Não conseguia dormir com um gato tão próximo de
mim. Até perdi o apetite de tão enjoada que andava com aquele odor. Decidi
começar a estudar as rotinas dele, perceber quando costumava ir à rua para
forçar um passeio ao mesmo tempo. Talvez se nos cruzássemos e eu o conseguisse
intimidar, ele fugisse para longe.
O
Jeremias passava os dias de sol numa poltrona junto à janela. Os donos chegavam
a casa e ele não se mexia. Nem um rasgo de excitação deixava transparecer. Que
animal ingrato, pensava eu. Os donos lá se aproximavam dele e faziam-lhe umas
festinhas. Ele abria um olho e voltava a fechar. Nada de acrobacias arriscadas
para festejar o regresso dos companheiros. Nem um lambidela atrevida!
Arrastava-se da poltrona até à cozinha para cheirar o prato da comida. Só a
provava 50% das vezes e raramente terminava a dose que lhe tinha sido dada. Que
coisa estranha. Eu fazia competições com a minha sombra para ver quem terminava
mais rápido a comida.
Aos
poucos, comecei a admirar o Jeremias. Não me interpretem mal, continuo a
detestar gatos, mas reconheço que eles sabem viver. Adotei alguns
comportamentos felinos: apoderei-me do sofá, onde apanho longos banhos de sol;
não me contento com qualquer alimento que me servem (já cheguei a ficar dois
dias sem tocar na taça da comida!), aprendi a reagir com indiferença quando sou
solicitada em momentos inoportunos (demorei meses a aperfeiçoar os meus
suspiros!)… enfim, julgo que estas atitudes me serão úteis nos tempos que se
avizinham. Parece que com a chegada do bastardinho haverá menos tempo para mim
e eu não quero parecer desesperada por atenção. Vou passar os meus dias de forma
mais independente. Talvez deva reduzir a exigência com a comida senão
arrisco-me a ficar dias sem comer e ninguém vai notar.
Noori
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